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REFLEXÕES SOBRE A INTERPRETAÇÃO MUSICAL

REFLEXÕES SOBRE A INTERPRETAÇÃO MUSICAL

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                 

 

A hermenêutica da interpretação musical

 

A música e a emoção são indissociáveis, manifestações complementares de um mesmo fenômeno. A emoção, desprovida da expressividade musical, torna-se insípida e desprovida de vivacidade. Em contrapartida, a música, mesmo que harmoniosa, se desprovida de emoção, não passa de mero ruído.

Toda obra de arte se estrutura sobre duas etapas essenciais: a concepção e a realização. Na música, contudo, essa correspondência se desfaz, dada a sua natureza intrinsecamente temporal. A obra musical, que se desenvolve na dimensão do tempo, não se encontra plenamente materializada na partitura. Esta é, na verdade, uma imagem abstrata, um esquema virtual à espera de ser decifrado e corporificado pelo intérprete a cada execução. Nesse sentido, enquanto as demais artes versam sobre as aparências, a música, por sua natureza, lida com a essência.

Não surpreende, portanto, que compositor e intérprete sejam figuras ontologicamente distintas. Mesmo um compositor que executa a própria obra de arte dá origem a uma miríade de realizações, cada uma moldada pela sua compreensão particular daquele momento.

A interpretação é, assim, de suma importância para a concretização da obra de arte. A linguagem musical não se restringe ao fluxo da vida e da alma em sua extensão temporal. Esse movimento interior, com suas cores inefáveis, imagens e ritmos, anseia por uma localização espacial precisa, que se manifesta nos elementos constitutivos do discurso musical (altura e duração dos sons, acentuação rítmica, dinâmicas, etc.).

Em termos filosóficos, a música escrita habita o tempo especializado, mensurável e reversível do criador, enquanto o tempo da consciência — o tempo metafísico, não mensurável e irreversível — é o que dá vida a ela. São dois planos ontologicamente distintos, cuja distância, a princípio, é intransponível.

A notação musical, por mais rica e perfeita que seja, é incapaz de expressar a complexidade da consciência do criador. Somente o intérprete, por meio de sua execução, pode traduzir a ideia musical concebida. A natureza extraordinária da linguagem musical reside precisamente na distância entre essas duas ordens, uma distância que garante a liberdade absoluta da criatividade, inclusive para o intérprete. Este não é um observador passivo, mas um agente que participa ativamente da realização da obra de arte e, ao mesmo tempo, é convidado à contemplação.

A contemplação, por si só, é um ato metafísico, pois nos impulsiona para além do dado fenomenal, em direção àquele germe criador que não é responsabilidade exclusiva de um artista individual, mas da “alma universal”.

A verdadeira interpretação é uma recriação, não porque repete o irrepetível — o ato criativo do compositor —, mas porque é uma criação no sentido inverso. Se a concepção procede da essência para a existência (o esquema virtual capaz de inúmeras encarnações), a interpretação procede da existência para a essência (da realização sensível para a ideia).

A interpretação genuína é capaz de vislumbrar não apenas o mundo e a alma de um indivíduo, mas o que precede e transcende qualquer representação sensível — o que a filosofia nomeia como a Essência.